Eu tinha quinze anos quando ele morreu. Quase dezesseis. Eu sou de maio, ele morreu em dezembro de 1965. Seu nome era José, mas todo mundo o chamava de Juca, Juca Villela . Pessoa simples, foi caminhoneiro boa parte da vida e, quando começava a pensar um pouco mais alto, tornando-se representante comercial, o câncer o levou. Fumava dois maços de Hollywood sem filtro por dia. Com certeza está aí a raiz de meu anti-tabagismo.
Lembro-me perfeitamente das viagens que fiz com meu pai. Saindo de Ponta Grossa. ficava às vezes quinze, vinte dias, viajando no mercedinho. Por mais que me esforce, não lembro da cor do mercedinho. Era mercedinho porque tinha um nariz, ao contrário do mercedão, que tinha cara chata, tipo fenemê.. Colecionador guarda só automóvel antigo, devia guardar esse caminhão também, que fez muita história. Carregava madeira das serrarias de Ponta Grossa, Guarapuava, Rebouças, Teixeira Soares para toda parte. Eu ia com ele de vez em quando, piazote dos meus 9, 10 anos, e lembro bem de uma viagem a São Paulo. A gente ia pela estrada de Itararé e, lembro-me bem, em Sengés cruzávamos um rio por cima da água mesmo, sem frescuras de ponte, essas coisas modernas. Lembro-me da tristeza que era passar pelas cidades de noite, aquelas de uma rua, vazias, vazias, aquelas luminárias pálidas com lâmpadas tão fraquinhas, amarelinhas, perto das de hoje. Isso em 1960, 1961. Castro, Piraí, Itapeva, Itararé, Sengés, era um rosário de cidadezinhas... Depois veio a BR2. Ligava S.Paulo a Curitiba por asfalto, via Registro, e meu pai passou a ir por ali. Isso foi legal para ele, pois em Registro fez muitos contatos e passou a vender bem a madeira e também móveis de aço da Securit, tornando-se "representante comercial". A japonesada de Registro comprava bastante e meu pai teve um relativo progresso no período que antecedeu a sua morte. Foi em Registro que eu descobri a música japonesa, pois tinha uma rede de alto-falantes que ficava tocando na cidade o dia inteiro... Outra coisa boa de Registro era o chá. Meu pai sempre comprava uma ou duas caixas de chá "Ribeira de Iguape", uma delícia. E também as bananinhas secas. Ele sempre trazia para casa essas delícias de beira-de-estrada. Cachos de banana, abacaxis, compotas e aquele delicioso doce árabe "Hallawi", feito de gergelim e que vinha numas latas, que você ainda encontra, procurando muito bem, ali no Mercado Municipal de Curitiba. Eu gostava mais de viajar via Registro do que via Irararé. Talvez por que às vezes meu pai descia até o litoral, até Iguape, o que era uma aventura e tanto. Uma vez fomos até Iguape numa Kombi e meu pai mandou eu ficar lá no fundo da dita porque com a estrada lamacenta o carro ficava dançando. E lá fiquei eu no fundão da Kombi todo enjoado, a dançar pra lá e pra cá no meio da estrada escorregadia. Hoje a gente reclama desses buraquinhos no asfalto... Vocês precisavam ver o que era viajar até Guarapuava numa estrada de terra que era um barreiro só. Outro dia vi na televisão umas cenas da Transamazônica, que em alguns trechos anda intransitável, os caminhões atolados até o teto. Pois era bem assim. Uma aventura. Levava-se quatro dias para vir de Guarapuava com tempo chuvoso. Dois dias inteiros com tempo bom e o caminhão carregado de madeira.
Certa feita, numa ida a S.Paulo mais demorada, levamos uns 20 dias, eu tinha uns dez anos, acometeu-me uma melancolia, uma saudade de casa. Saudade da mãe, sei lá. Eu sempre fui muito caseiro, muito do lar. Quando viajo sempre estou com as pernas na estrada mas o coração na casa que deixei. Fiquei doente, meu pai se preocupou e as viagens comigo se tornaram mais raras, só as mais curtas.
Meu pai tinha um corpo de atleta - tenho umas fotos bonitas dele, jovem, nadando no Tibagi ou no Imbituvão. Ele se orgulhava muito de sua força física e vivia a me exibir seus bíceps e fazendo-me mostrar o meu, de guri pálido e fracote - eu era asmático... Meu pai era o mais forte dos quatro irmãos, José, Dalmo, Orlando e Amilton Villela da Costa, filhos de Dona Balbina ( Binoca) Guimarães Villela e o sr. Armando Costa, imigrante português divertido que se estabeleceu no Paraná na região de Rebouças. Meu pai era o mais forte mas foi o primeiro a morrer, com apenas 46 anos. Meu tio Dalmo ainda vive, bonachão, alma gentil e doce. Uma vez, contou-me minha mãe - parece-me que no Cine Império, no meio de uma sessão, alguém da fila de trás mexeu com minha mãe. Foi a conta. Meu pai pegou o cara pelo colarinho, levantou-o e o jogou contra as cadeiras , arrancando quase meia fileira do chão, parafusos a voar. Foi um bafafá. Acenderam a luz e interromperam a exibição. Quem mandou mexer com minha mãe ? Assédio era resolvido assim, na bolacha.
Mas não lembro de um episódio sequer em que meu pai tenha me batido. Ele se preocupava, sim, com que eu me alimentasse bem. Queria me ver forte, musculoso. E eu, coitado, franzino, pálido, asmático. Sofri de asma até quase os dezesseis anos. Um dia minha vó me levou a Curitiba, numa senhora que fazia "simpatias". Ela me encostou num muro, pregou um prego na minha altura, com uns fios de meu cabelo, fez uma reza, mandou eu tomar um xarope esquisito e, pronto ! A asma sumiu. Espero que não volte. Espero que esse muro seja bem firme...
Foi o Hélio (Rangel de Abreu) quem correu para a rua me avisar que meu pai tinha morrido. Eu estava encostado no Citroën preto do seu Willy Oscar Targa, conversando com o William, seu filho, o Martins e o Cláudio Rugillo, quando ele veio correndo, esbaforido: - tua mãe tá te chamando´, é pra você subir. Parece que teu pai morreu... Tinha levado seis meses na agonia, injeções de morfina, os braços furados, só pele e osso...Quem aplicava era o Nelson da farmácia Milka, que sofria com a gente.
A invenção das capelas funerárias foi realmente um progresso. Que coisa triste era velar um pai na sala de sua própria casa e dali sair com o féretro, atravessando a cidade inteira até o cemitério ! Lembro-me que o cortejo saiu de casa, na rua Fernandes Pinheiro, e fomos pela Cel Cláudio até a Igreja do Rosário, onde foi rezada missa de corpo presente. Se fechar os olhos ainda vejo a cena de passarmos em frente a todas aquelas lojas, gente fazendo sinal da cruz, tirando o chapéu, todos aqueles conhecidos, o Chamma, o Nelson da farmácia Milka, o Júlio Neme, da Casa Íris, aquele judeu da Casa do Povo, todos olhando a gente passar lentamente, num silêncio de só ouvir as passadas de você, sua mãe e irmãos ao lado e as pessoas que vinham atrás no cortejo. Quando chegamos à Igreja, o caixão foi aberto e saiu aquele cheiro forte de morte e flores de que nunca mais se esquece. E depois, ainda, a caminhada lenta até o Cemitério S.José, lá em cima, que martírio. São dias que não se esquecem, esses como foi o 12 de dezembro de 1965.
Lamento muito. A saudade é infinita.
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